Antivirais — Mostra Macambira — Mulungu Audiovisual (2020)

Raul Pacheco
5 min readMar 24, 2020

Num momento em que a terra se encolhe diante da ação de um ser menor que uma bactéria (não, não falo do jair…), iniciativas ativas enaltecem as vibrações de existir nessa época trágica e decisiva.

cartaz da mostra

A Macambira

Após a valorosa exibição do longa keniano Rafiki, o Mulungu Audiovisual reforça suas potências com a Mostra Macambira de Cinema de Realizadoras, exibida entre 10, 11 e 12 de março.

Filmes e sessões

Divididos em sessões de eixos simbólicos como ‘Em guerra’, ‘No palco, na reza, na labuta’, ‘Abraço’ e ‘Tremor’, a Mostra trouxe a Natal um sensacional panorama da produção fílmica de mulheres ao redor do Brasil e dentro do RN. Penso que esses ares são de uma contribuição imensurável para as criações e o pensamento do audiovisual da cidade. Ver a sessão de A Parteira transbordando de gente é sinal de que vivemos um momento incrível de crescimento de público e produções.

A Mostra

A sessão inaugural, entre três outros filmes combativos e audaciosos, exibiu Seremos Ouvidas, de Larissa Nepomuceno (PR), filme sobre o feminismo das mulheres surdas que traz uma perspectiva tão eloquente quanto surpreendente. Repleto duma delicadeza avassaladora, o doc se inicia com imagens barulhentas de manifestações para subitamente cortar para o silêncio e apresentar uma série de relatos que ilustram o tamanho das suas dificuldades em meio ao machismo e a incompreensão. Interessantíssimo escutar sobre as opressões que sofrem, seus relacionamentos, os ciúmes e a força que manifestam como forma de superar tudo isso — a vocação para ser mais (em que Paulo Freire tanto insiste).

No final do primeira dia A Parteira, filme de Catarina Doolan, trouxe uma fatia da existência grandiosa de Donana, parteira do município de São Gonçalo do Amarante. Premiado na 23ª Mostra de Tiradentes/MG, o filme impressiona pela sabedoria e resiliência de uma mulher cuja profissão é trazer vida à terra.

Bem no início senti aquela sensação extasiante de (mais uma vez¹) estar diante de uma obra maravilhosa, protagonista duma potência invencível como a de Estamira e temperada pela serenidade sábia de Seo Inácio. É um filme encantador que renova o gosto e a perplexidade em acompanhar as produções que acontecem ao redor do estado (torcendo para que cada vez mais olhos, ouvidos e corações estejam abertos para perceber estes encantos).

Esta mesma sessão (‘No palco, na reza, na labuta’) também exibiu Performance, de Karina Moritzen, onde Potyguara Bardo fala um pouco sobre sua vivência e o que carrega de vida sua para o palco. O filme impressiona pela clareza que a cantora tem de si e de sua responsabilidade artística.

Na quinta-feira assisti a mostra ‘Abraço’, que trouxe filmes como Receita de Carangueijo, de Isis Valenzuela (SP), e Sem Asas, de Renata Martins (SP).

Embora a história do primeiro não seja nada absurda, a maneira como as situações são registradas confere uma progressiva transição entre realidade e fantasia. Tanto a captação das imagens se torna mais próxima e tensa, causando sensações esquisitas de repulsa e espanto, quanto a cena final traz um momento surpreendente de contemplação, quando o mar fica repleto de luzes azuis, lembrando as noctilucas do Uruguai. Já o filme seguinte foi o curta ficcional mais impressionante que já vi. Reunindo sofisticação técnica a um roteiro cuidadoso, dramático e belo, a história de Zu brilha por ser ao mesmo tempo real, fantástica, triste e inigualavelmente bela. Sim, exagero para tentar alcançar o impacto que senti. E olha que esse seria apenas o primeiro grande impacto do dia.

A sessão seguinte, ‘Tremor’, de filmes potiguares, merece o nome que recebe. A proximidade com temor diz bastante sobre o véu de medo que paira, transparente e nítido, ao longo desta cidade assustada. O feixe de produções flerta com o terror e se revela como algo quase natural, por infeliz que seja constatar. Entre as obras, Antrum consegue segurar a tensão e prender a atenção como nenhuma das outras.

Pela noite, consegui voltar a tempo de ver o filme baiano Ilha, de Glenda Nicácio e Ary Rosa. O baque gerado é comparável ao de filmes como Trainspotting e Clube de Luta, porém em termos completamente distintos. É um filme forte, corajoso, libertário, e altamente descompromissado em seguir padrões. Evidente o risco, mas as diretoras lançam-se por cima do abismo e planam alcançando uma obra que, se não supera, igual em brilho e singularidade outras pérolas do cinema nordestino (Tatuagem, Febre do Rato, Cidade Baixa, Recife Frio…).

Sobre Ilha, a crítica² parece não compreender o que é central no filme, a discussão simbólica de um país fraturado e paradoxalmente unido, consciente de sua força e sua fragilidade de uma forma incaptável pela via estreita da lógica mais banal. Dizer que o Brasil não é para amadores virou lugar comum demais. O Brasil, pelo contrário, é para os amadores mais amadores dentre os amadores, se é que se entende a pluralidade duma palavra como essa. Enfim, não se pode compreender o tutano do filme se nos atermos ao que é superficial. É estúpido encarar o filme como narrativa realista, esquecendo do seu espírito de fábula. É um tanto decepcionante perceber que há quem não consiga captar a grandiosidade que se apresenta escancarada diante de si, mas é absurdamente natural que surjam opiniões contraditórias; suscitar a divergência, nesse caso, é uma forma de glória que a unanimidade jamais alcançaria.

Ilha se propõe a entrar no jogo dos filmes que compõem a ossatura do cinema brasileiro. O momento em que rola aquela do Clube da Esquina é algo duma latitude de brasilidade que está além da minha condição colocar em palavras…

E parabéns especiais para Rosy Nascimento pela condução firme, serena e simpática das exibições!

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¹ e Abraço de Maré.
² a crítica: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-266559/criticas-adorocinema/

Referências:

http://blog.tribunadonorte.com.br/blogdoviver/2900 [sobre A Parteira]
https://www.youtube.com/watch?v=bA_Ua-4klmk [entrevista Catarina Doolan]
http://www.cinevitor.com.br/ary-rosa-fala-sobre-ilha-longa-exibido-na-22a-mostra-de-cinema-de-tiradentes/
https://www.youtube.com/watch?v=18AbQ2ByFwE [entrevista Ary Rosa e Thacle de Souza]
http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/o-cinema-com-rosto-de-mulher/474196
https://apartamento702.com.br/macambira-mostra-de-cinema-de-realizadoras-comeca-amanha-em-natal/
texto escrito sob a influência de um poderoso psicogênico: https://radiobatuta.com.br/documentario/imbativel-ao-extremo-assim-e-jorge-ben-jor/

ps: evidente que haveria muito mais sobre filmes e reflexões por falar, mas venho optando pelos formatos mais reduzidos em benefício da fluidez de leitura.

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